Site exagera falas de médico alemão sobre medidas rígidas contra o novo coronavírus
Enganoso: Frase atribuída a médico alemão em site brasileiro não foi dita de forma literal pelo pesquisador. Ele fala, na verdade, sobre como as medidas mais rígidas de contenção à doença afetam outros setores da vida da sociedade
25/05/2020
O título de um artigo publicado no site Conexão Política com a tradução de uma entrevista do médico alemão Gérard Krause tem confundido as pessoas ao atribuir a frase `Medidas de bloqueio matam mais que o próprio coronavírus` ao especialista sem considerar o contexto em que ela foi dita. O conteúdo viralizou no Facebook na última semana.
O texto publicado no dia 13 de maio é baseado em entrevista dada por Gérard Krause em 29 de março ao canal de televisão alemão ZDF. No conteúdo original, o médico falou sobre o combate à covid-19 na Alemanha, dizendo que as medidas prolongadas de isolamento rígido podem causar outras doenças, como as mentais, e mortes na população.
`Temos que manter essas medidas sociais sérias o mais curtas e menores possível, porque elas podem causar mais doenças e mortes do que o próprio coronavírus`, disse Krause, ressaltando que é preciso considerar o impacto da covid-19 em outras áreas da sociedade e não apenas nas vítimas do novo coronavírus.
Na entrevista original, Krause defende que as medidas de isolamento sejam empregadas pelo menor tempo possível, considerando atenção especial ao grupo de risco e a outras áreas da sociedade, como a área econômica. No entanto, não se diz contra a quarentena. O médico alemão propõe uma organização `para que aconteça um afrouxamento cedo e com cautela ao mesmo tempo`.
O Comprova tentou contato com Gérard Krause por e-mail, mas o médico não retornou até a publicação do texto.
Por que investigamos isso?
O Comprova fez esta verificação porque ela diz respeito a um dos temas que tem gerado mais comoção durante a pandemia: a aplicação e a extensão das medidas de isolamento social como forma de mitigar os efeitos do novo coronavírus.
No Brasil, este debate tem sido protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro, que defende firmemente a retomada de diversas atividades econômicas. Essa proposta é rechaçada por autoridades sanitárias, uma vez que poderia ampliar a contaminação pelo vírus e levar ao colapso dos sistemas de saúde. Assim, governos estaduais estão adotando o isolamento social como uma medida central nas políticas públicas contra a pandemia.
O conteúdo sobre as falas do médico alemão se junta a diversos outros que têm sido espalhados para reforçar o posicionamento de Bolsonaro. São, muitas vezes, textos que trazem frases ou fatos fora de contexto ou deturpados para criticar as políticas de isolamento social.
Foi o caso, por exemplo, de um texto que, enganosamente, tentou fazer o público crer que a Organização Mundial da Saúde (OMS) era contrária ao isolamento, o que não é verdade. Foi, também, o caso de um vídeo com declarações do governador de Nova Iorque , nos Estados Unidos, que tentava indicar que o distanciamento social seria prejudicial por, supostamente, facilitar infecções ? isso também não é verdade.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor.
Como verificamos?
Acessamos a entrevista original, concedida por Krause ao canal ZDF, para comparar com a versão em português publicada pelo site Conexão Política.
Em seguida, buscamos notas técnicas e estudos divulgados pelos pesquisadores do Centro de Pesquisas de Infecções Helmholtz, onde Krause trabalha, e pela Organização Mundial da Saúde.
Matérias jornalísticas publicadas desde o início da pandemia também serviram de base para a apuração do Comprova.
Verificação
O médico Gérard Krause concedeu entrevista ao canal alemão ZDF, em 29 de março, sobre as medidas de combate ao novo coronavírus no país, e se mostrou a favor de que as medidas rígidas de isolamento social, adotadas para diminuir a taxa de transmissão da doença e não sobrecarregar hospitais, sejam coordenadas para que possam durar o menor tempo possível, de modo que áreas como a economia não sejam tão afetadas.
A Alemanha adotou o lockdown em 22 de março e começou, nas últimas semanas, uma reabertura cautelosa do isolamento obrigatório. O país tem um dos números de mortes mais baixos entre os locais com mais casos confirmados de covid-19, 7.988 até o dia 18 de maio. Inclusive menor que o do Brasil, com 16.196 em 18 de maio.
A entrevista foi parcialmente traduzida para o português pelo site Conexão Política e publicada com um título mais incisivo do que o tom adotado pelo médico alemão. A frase `medidas de bloqueio matam mais que o próprio coronavírus` não foi dita de forma literal pelo médico, que fala, na verdade, sobre como as medidas mais rígidas de contenção à doença afetam outros setores da vida da sociedade.
Krause não se mostra a favor de medidas rígidas de isolamento, mas também não diz ser contra a quarentena. Ele defende um `afrouxamento precoce`, porque acredita que essas restrições por um período muito longo podem gerar impactos que vão além dos causados pela própria doença.
Ao longo da entrevista original, Krause ressaltou que é necessário ter cautela ao mesmo tempo em que as medidas são afrouxadas e admite que, mesmo protegendo grupos de risco, `ainda haverá doenças e mortes entre os jovens`. Também afirmou que é preciso continuar estudando a doença paralelamente às medidas de isolamento porque `isso ajudará a reduzir essas medidas muito gerais e a fortalecer e manter as medidas focadas e direcionadas`.
Segundo ele, a preocupação vai além da área da saúde. Para o médico, entre as outras consequências preocupantes, está a crise econômica e doenças mentais que podem ser causadas pelo isolamento prolongado.
`Sabemos que o desemprego, por exemplo, causa doenças e até aumento da mortalidade. Também pode levar as pessoas ao suicídio. Restringir a liberdade de circulação provavelmente terá um impacto negativo adicional para a saúde pública. Não é tão fácil calcular essas consequências diretamente, mas elas ainda acontecem e podem ser mais graves do que as consequências das próprias infecções`, falou na entrevista.
Quem é Gérard Krause
O médico Gérard Krause ocupa, há 20 anos, o cargo de chefe do Departamento de Epidemiologia do Centro de Pesquisas de Infecções Helmholtz, uma das maiores instituições acadêmicas direcionadas exclusivamente a pesquisas de infecções da Alemanha. De acordo com o currículo de Krause apresentado na ResearchGate, uma rede social de pesquisadores e profissionais da área da ciência, sua pesquisa é focada no desenvolvimento da cibermedicina e estudos de eficácia para intervenções de saúde pública na área de doenças infecciosas.
Para Krause, as medidas de isolamento social adotadas por países atingidos pela pandemia devem ser eficazes e impostas com menor duração possível para que os impactos em outras áreas, como a econômica, sejam minimizados. Ele ressalta, no entanto, que é preciso preparar o sistema de saúde e ficar atento aos grupos de risco. Sua visão é totalmente focada no caso da Alemanha.
O Helmholtz, no entanto, publicou um pronunciamento em 13 de abril, no qual afirma que as medidas rígidas de distanciamento social adotadas na Alemanha desde março foram determinantes para a diminuição das taxas de transmissão do novo coronavírus no país e que é preciso cautela no processo de reabertura.
O Comprova escreveu e-mails para Krause e para a assessoria de imprensa do Helmholtz, mas não teve retorno.
Gérard Krause coordena três projetos de combate à pandemia. O primeiro, e o mais conhecido, trata de testes de anticorpos para detectar quem já foi infectado e possui defesa contra a covid-19 e, por isso, pode voltar a exercer suas atividades normalmente. A ideia do projeto é que as pessoas, principalmente os profissionais essenciais como médicos e enfermeiros, retornem o mais rápido possível à linha de frente de combate após terem adquirido a doença, com uma espécie de `passaporte de imunidade`. Ele propõe uma testagem em massa para detectar quem já tem anticorpos, para que essas pessoas sejam liberadas das medidas restritivas. Atualmente, a Alemanha registra mais de 150 mil recuperados de covid-19.
O segundo projeto é a utilização de um aplicativo criado em 2014, chamado de SORMAS, para controle de doenças e avaliação de riscos. No caso da pandemia, o aplicativo permite a detecção precoce de casos e monitoramento das pessoas infectadas e daquelas que tiveram contato com elas. O aplicativo gera dados em tempo real para que sejam avaliados os riscos nas regiões onde está sendo usado.
Por fim, o médico faz parte do projeto de cooperação europeu para aumentar a comunicação entre países no que se refere a informações clínicas, epidemiológicas e imunológicas sobre a pandemia. A iniciativa também tem pesquisadores da Holanda, Suíça e países de fora da Europa como a China. O foco é colher dados para que sejam avaliadas as medidas tomadas contra o novo coronavírus e sua disseminação.
O `passaporte de imunidade` e o que pensa o centro de pesquisas do qual ele faz parte
A ideia de um `passaporte de imunidade`, concedido às pessoas que já se infectaram pelo novo coronavírus e possuem, depois de curadas, anticorpos contra a doença, começou a ser discutida no mundo no final de março. Na época, foi lançado na Alemanha, pelo instituto Helmholtz, um estudo sobre a abrangência da imunização ao novo coronavírus. O Dr. Gérard Krause estava entre os participantes da pesquisa.
Em 23 de abril, o Instituto publicou uma atualização das ações que estavam sendo realizadas naquele momento pelos pesquisadores, e a imunidade de quem já teve covid-19 é um dos objetos de estudo. Segundo a publicação, uma das ideias seria identificar indivíduos para quem as restrições a viagens e atividades poderiam ser suspensas ? basicamente o que propõe o chamado `passaporte de imunidade`.
A Organização Mundial da Saúde publicou, em 24 de abril, um comunicado sobre os tais passaportes. Para a OMS, não existem evidências suficientes para garantir que as pessoas que se recuperaram da infecção pelo novo coronavírus e possuem anticorpos estão imunes a uma segunda contaminação.
`Muitos países estão agora testando para os anticorpos da SARS-CoV-2 em toda a população ou grupos específicos, como profissionais da saúde [?]. A OMS apoia esses estudos, que são cruciais para o entendimento da extensão ? e os fatores de risco associados ? da infecção. Esses estudos vão fornecer dados sobre porcentagem de pessoas com anticorpos detectáveis da covid-19, mas a maioria não foi criada para determinar se essas pessoas são imunes a infecções secundárias`, diz o comunicado, em tradução livre.
Em meio ao anúncio de gradual reabertura da Alemanha nas últimas semanas, o Centro de Pesquisas Helmholtz, do qual Gérard Krause é pesquisador, soltou um posicionamento em 13 de maio juntamente com o Ifo Institute, que gerencia pesquisas na área econômica, defendendo a abertura limitada do país após o sucesso das medidas de isolamento. Ou seja, oficialmente, a entidade é cautelosa sobre o relaxamento das medidas restritivas em favor da economia e alerta que uma abertura rápida no curto prazo pode aumentar custos gerais e prolongar a fase de restrições.
`É do interesse comum de nossa saúde e da economia ser cautelosos em relaxar as restrições e monitorar de perto como as taxas de infecção se desenvolvem`, diz um trecho do comunicado, se referindo ao número R, que determina o potencial de propagação do novo coronavírus. Se o número foi superior a um, significa que cada contaminado é capaz de transmitir a doença para pelo menos mais uma pessoa.
`Se as restrições em vigor até 20 de abril de 2020 forem mantidas, o número previsto de mortes adicionais será de 5 mil. Esse número diminui apenas um pouco em um número baixo de reprodução, mas aumenta acentuadamente a uma taxa de 0,9 ou mais, atingindo mais de 20.000 mortes adicionais a 1,0`, ressalta o texto.
Contexto
O texto sobre o médico alemão circula em meio à crescente tensão entre Jair Bolsonaro e os governadores a respeito do isolamento social. O presidente da República tem defendido de maneira enfática o fim das medidas e a abertura da economia. Na quinta-feira 14, Bolsonaro reafirmou sua posição em um encontro com empresários. `O governo federal, se depender de nós, estava tudo aberto com isolamento vertical e ponto final`, afirmou Bolsonaro.
O `isolamento vertical` citado por Bolsonaro consiste na estratégia de resguardar apenas as pessoas mais suscetíveis ao coronavírus, liberando todas as outras para o trabalho: países como Holanda e o Reino Unido chegaram a implantar essas medidas, mas desistiram diante de estudos que indicam a possibilidade de essa medida ter efeitos catastróficos.
Na mesma reunião com empresários, Bolsonaro afirmou que a disputa a respeito do isolamento social `é guerra` e que o setor empresarial precisa `jogar pesado` com os governadores para reabrir todas as atividades econômicas.
Alcance
Publicado no dia 13 de maio, o texto enganoso a respeito das declarações do médico alemão teve mais de 87 mil interações no Facebook de acordo com a ferramenta de análise de dados CrowdTangle.
Investigação e verificação
UOL e BandNews FM participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos SBT, A Gazeta, Poder 360 e Estadão.Projeto Comprova
Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 24 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. A edição de 2019 foi dedicada a combater a desinformação sobre políticas públicas. Neste ano, os veículos se dedicam a monitorar redes sociais e aplicativos de mensagens em busca de informações duvidosas sobre o novo coronavírus. O SBT faz parte dessa aliança.
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