ENGANOSO: Laudo não é capaz de provar que é de Lula áudio com ameaça a Palocci
Confira a verificação realizada pelos jornalistas integrantes do Projeto Comprova
18/10/2022
Enganoso: É enganoso afirmar categoricamente que áudio de Lula com suposta ameaça de morte a Antonio Palocci é verdadeiro. Laudo utilizado para sustentar texto de site diz que os exames realizados suportam muito fortemente a hipótese de que o registro seja do ex-presidente, mas não se pode assegurar que o material não tenha sido editado e que seja, de fato, Lula falando, como apontam especialistas consultados pelo Comprova.
Conteúdo investigado: Texto publicado pelo site Brasil Sem Medo afirmando que perícia confirma autenticidade de gravação de 2017 na qual o ex-presidente e candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirma que "ninguém teve a competência e a coragem de acabar" com Antonio Palocci, ex-ministro da Casa Civil.
Onde foi publicado: Site, Facebook, YouTube, TikTok e Instagram.
Conclusão do Comprova: Texto do site Brasil Sem Medo engana ao indicar que laudo pericial pode afirmar, categoricamente, que áudio, supostamente de Lula comentando afirmações feitas por Antonio Palocci, é verdadeiro. A página se baseia em laudo da perita aposentada Nerci Lino de Almeida Tonaco, que conclui o documento afirmando que o resultado de exames feitos por ela "suporta muito fortemente a hipótese" de que os registros de voz presentes no material sonoro questionado tenham sido proferidos pela mesma pessoa que produziu material sonoro padrão ? falas utilizadas para comparação ?, no caso, o ex-presidente Lula.
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Por telefone, a perita, que trabalhou na Polícia Federal, declarou ao Comprova que "tudo indica que a voz é mesmo dele", mas nem mesmo ela dá a certeza de que seja, o que é impossível segundo outros peritos ouvidos pela reportagem. Eles destacam que sequer há como assegurar que o áudio não tenha sofrido edições, isso porque não se sabe a origem do material ? como foi gravado e por quem ? e a tecnologia atual é capaz de tornar imperceptíveis sinais de edição do áudio.
Consultada pelo Comprova, a perita fonoaudióloga Carla Vasconcelos levantou uma série de dúvidas sobre a origem, guarda e preservação do conteúdo antes de chegar a Nerci Lino para análise. Diante disso, concluiu ser o material frágil para embasar uma avaliação segura.
O professor de Engenharia da Informação da Universidade Federal do ABC (UFABC) Mário Gazziro analisou o áudio para o Comprova utilizando uma metodologia diferente daquela aplicada por Nerci e declarou ter identificado características de mais de uma voz no material, o que, segundo ele, é um indício de manipulação. Em setembro, uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ordenou que mais de 40 sites que veicularam o áudio retirassem o material do ar.
Para o Comprova, enganoso é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor.
Alcance da publicação:Conforme a ferramenta CrowdTangle, o texto teve mais de 32 mil interações no Facebook até o dia 17 de outubro.
O que diz o responsável pela publicação: Procurado por email, o site não se manifestou até a publicação desta verificação.
Como verificamos: O Comprova analisou o laudo citado no material verificado e ouviu diferentes peritos especialistas em áudio. Alguns examinaram o conteúdo distribuído em redes sociais e outros avaliaram o documento emitido pela perita Nerci Lino. A reportagem procurou o Partido dos Trabalhadores, a perita que emitiu o laudo e o site responsável pela divulgação do conteúdo.
Laudo foi produzido por perita aposentada da Polícia Federal
O documento que baseou o texto do site Brasil Sem Medo, intitulado "Áudio de Lula é verdadeiro, aponta laudo", foi elaborado pela perita aposentada da Polícia Federal Nerci Lino de Almeida Tonaco. Ela ocupava o cargo de perita criminal federal desde 2009, tendo ingressado no serviço público em 1999. Ela se aposentou em julho de 2018.
Apesar de o texto do Brasil Sem Medo afirmar que o laudo demonstra a veracidade do áudio, o que a perita aponta na conclusão é que a "comparação de locutores" ? entre o áudio questionado e 37 áudios de Lula coletados por ela no YouTube ? "suporta muito fortemente" a hipótese de os áudios terem sido proferidos pela mesma pessoa: Lula. O resultado, explica a perita no laudo, corresponde ao nível +4 da escala NFI (Netherlands Forensic Institute), que vai de -4 (quando o resultado contrapõe-se muito fortemente à hipótese) a +4 (resultado suporta muito fortemente a hipótese).
Em contato com o Comprova por telefone, a perita Nerci Lino disse que "tudo indica que se trata da voz dele mesmo". Ou seja, de Lula. Ela informou que fora indicada pela Associação dos Peritos Criminais Federais do Brasil (APCF) ao contratante do serviço, cuja identidade preferiu não revelar.
O Comprova entrou em contato com a APCF, que enviou nota afirmando que a "entidade disponibiliza a qualquer interessado uma relação de peritos criminais federais aposentados, por área de atuação, que realizam serviços privados de assistência técnica, prática legal para os associados que já não fazem mais parte do serviço ativo".
O documento ressalta que as análises técnicas realizadas e respectivas conclusões em cada caso são de responsabilidade exclusiva dos autores signatários de cada peça. A organização confirmou que Nerci é associada da APCF, e que a aposentada fez "um documento técnico, decorrente de uma atuação privada". Disse, ainda, que sua atividade "não se dá em nome da PF e nem da APCF, mas sim no campo particular".
"Peritos aposentados podem fazer serviço de assistente técnico. Ela fez um parecer técnico, particular, já que ela não faz mais parte da ativa da Polícia Federal. Não é um laudo oficial, pois ela não está mais na ativa", esclareceu a APCF.
Ao utilizar outra técnica, perito chega a resultado diferente
O áudio com a suposta voz de Lula foi analisado, a pedido do Comprova, pelo professor de Engenharia da UFABC Mário Gazziro. O conteúdo foi comparado com discurso feito pelo ex-presidente em 10 de maio de 2017 e divulgado no canal oficial do PT no Youtube. A similaridade, segundo a avaliação de Gazziro, é de 39%, resultado considerado inconclusivo, mas que aponta para pouca relação com a voz do petista.
A técnica usada pelo professor chama-se análise cepstral (em que se extrai um mapa gráfico, como se fosse a impressão digital da voz) e é diferente daquela aplicada pela perita que assinou o laudo aqui verificado. Gazziro analisou o trato vocal (características da voz que são específicas de cada indivíduo). Para isso, as vozes foram primeiramente convertidas em uma série de números e, em seguida, as fórmulas foram aplicadas em um software de análise matemática.
De acordo com Gazziro, quando o resultado é de 80% ou mais, a conclusão é de que há indícios fortes de as vozes comparadas pertencerem à mesma pessoa. Quando o percentual é menor do que 30%, os indícios são fracos. Entre 30% e 80%, o resultado é inconclusivo. "Neste meio termo fica um pouco inconclusivo, tendendo mais para não ser, do que para ser", explicou.
Na visão do especialista, no caso aqui analisado, o percentual ficou em 39% porque há indícios de mais de uma voz ao longo do áudio. "Não localizei princípio de edição, mas a gente percebe nas análises de cepstrum que tinha trechos com tratos vocais diferentes. Então, deu pra perceber que foi mais de uma pessoa. Não era a mesma voz o tempo todo", explicou.
Gazziro afirma que o trato vocal de uma pessoa pode mudar ao longo de anos e, por este motivo, a comparação foi feita com áudio de 2017, ano em que a gravação foi supostamente feita. No entanto, não é possível que essa característica sofra alterações em poucos minutos. "Houve provavelmente uma montagem, embora não se encontre os ruídos que antigamente eram procurados pelos peritos. Hoje, qualquer computador tem capacidade de editar digitalmente. Se você tiver paciência, você abre o áudio e corta todos os cliques de montagem. Se a montagem for bem feita, só resta essa análise cepstral para poder descobrir se foi realizada uma montagem com trechos da voz verdadeira somados a trechos falsificados", explicou.
Para Gazziro, o laudo aqui verificado foi bem elaborado em relação à metodologia, mas o documento não traz elementos para sustentar a conclusão de que se trata efetivamente da voz de Lula. O professor explica que a metodologia usada por Nerci é baseada em um método holandês. Gazziro criticou sua aplicação neste caso porque, em sua visão, o perfil da Holanda não pode ser aplicado ao Brasil, por causa da diferença de tamanho da população.
"Com uma população pouco maior do que a cidade de São Paulo, conferir um nível de certeza na Holanda com base apenas em perfis de voz é mais confiável, pois uma parcela bem menor da população terá o mesmo padrão natural de ocorrência. É errado afirmar categoricamente que a voz pertence ao ex-presidente Lula, sendo que a técnica permite no máximo encontrar padrões para faixas da população, e não identificar um indivíduo em específico", disse.
Especialista considera material frágil para a realização de uma perícia segura
O laudo realizado por Nerci Lino também foi avaliado pela perita fonoaudióloga Carla Vasconcelos. Em sua análise, a especialista chama atenção para a importância de preservar a cadeia de custódia de um arquivo a ser periciado, ou seja, sua proteção e guarda, com controle histórico e cronológico de acessos. O objetivo é diminuir ? mas não anular ? as chances de manipulações fraudulentas no material. Uma vez que, aparentemente, o áudio atribuído a Lula chegou à Nerci Lino via Telegram (informação que consta no laudo) em formato mp4, Vasconcelos o considerou "frágil para uma análise pericial segura".
"Quem gravou o áudio? Como o gravou? Por que está em formato de vídeo e não de áudio? Houve conversão de uma gravação de áudio ambiental para o formato de vídeo? Quais outras edições foram feitas além dessa possível conversão de áudio para vídeo? Quantas pessoas tiveram acesso ao arquivo? Quem solicitou o laudo à perita? Como obtiveram acesso ao material de áudio?", enumera Carla.
A proteção e guarda do material a ser periciado consta na lei 13.964 de 2019, que inseriu a garantia no Código de Processo Penal. O dispositivo considera cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. O trecho pode ser verificado aqui:
| Captura de tela de texto da Lei Nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, realizada pelo Comprova em 30/09/2022.
Carla Vasconcelos detalha: "Do meu ponto de vista técnico, ao receber um material já convertido de formato (ou seja, ele já estaria sim com, ao menos, uma edição prévia), com total desconhecimento da fonte de gravação, do responsável por sua realização, da quantidade de pessoas que puderam ter tido acesso ao material, torna-se muito difícil atestar que não há edições nesse material de áudio".
Na prática, a perita explica que a preservação da cadeia entre o áudio original e sua análise por um especialista, bem como a verificação de edição fraudulenta, são critérios iniciais para o trabalho de perícia. Caso não sejam atendidos, "geralmente, nem se chega à etapa da comparação do falante (de voz), tendo em vista que não haveria garantias de um resultado seguro e adequado", afirma a fonoaudióloga.
Se referindo ao laudo de Nerci Lino, Vasconcelos confirma que a metodologia adotada é aceita na comparação de falantes (voz). Além disso, chegar ao resultado "+4" significa que sua análise suporta fortemente a hipótese do material ter sido proferido pelo ex-presidente Lula. Entretanto, ela completa que "nesse tipo de classificação, não se faz uma afirmação categórica, do tipo é ou não é". Logo, apoiar fortemente uma hipótese não seria sinônimo de garantir com certeza que o áudio de fato pertence ao petista ou não.
Justiça manda páginas apagarem publicações
Em decisão liminar publicada no dia 26 de setembro, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Paulo de Tarso Vieira Sanseverino determinou a suspensão de mais de 40 publicações que repercutiram o áudio com suposta voz de Lula. As postagens foram realizadas em redes sociais e sites. Entre os portais que tiveram a publicação suspensa está o Brasil Sem Medo. A decisão do ministro teve caráter provisório e de urgência, devido ao contexto de eleições em que as mensagens circulavam. Isso significa dizer que o mérito ou "cerne" da acusação ainda não foi julgado definitivamente pelo TSE. Logo, a remoção das publicações a pedido do Tribunal não comprova que os áudios são falsos ou verdadeiros, pois só houve uma primeira análise do material.
| Recorte da decisão liminar do TSE, disponível aqui.
Na avaliação do ministro, as publicações transmitem conteúdo sabidamente falso contra Lula. Sanseverino usa como base para sua decisão análises publicadas por agências de checagens, entre elas, o Comprova. O pedido de suspensão das publicações foi feito pela coligação liderada pelo petista, contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e mais canais acusados de uma suposta prática de propaganda eleitoral irregular na internet. No dia 4, o tribunal referendou a decisão do ministro.
Checagens já mostraram que áudio não é confiável
Em publicações relacionadas ao áudio e laudo que são alvos desta verificação, o Brasil Sem Medo usou o documento para atacar checagens publicadas anteriormente pelo Comprova e Fato ou Fake, do G1, que já mostravam elementos que demonstravam que o áudio não é confiável.
O texto do Comprova aponta, por exemplo, que o áudio começou a circular em 2017. Na época, o áudio foi divulgado acompanhado de texto que afirmava que Lula estava reagindo à notícia da delação de Palocci. No entanto, naquele ano o ex-ministro ainda não havia fechado este tipo de acordo com autoridades. Isso ocorreu apenas em 2018.
O texto que acompanhou o áudio também falava que se tratava de um grampo. No entanto, o conteúdo tem apenas a voz de Lula e gravações autorizadas pela Justiça trazem as vozes das duas pessoas que participam da ligação. O Fato ou Fake destacou que a gravação não consta em nenhuma das interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça Federal envolvendo Lula.
A falta de elementos que demonstrem a confiabilidade do áudio também foi citada por checagens de Aos Fatos, Veja, É ou Não É, do G1, Estadão Verifica, E-Farsas e Gaúcha ZH.
Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre a pandemia de covid-19, políticas públicas do governo federal e eleições presidenciais. A publicação aqui verificada traz relato não confiável sobre a conduta de Lula, um dos candidatos à presidência da República neste segundo turno da eleição. A desinformação prejudica o processo democrático, pois pode levar eleitores a tomarem decisões sobre voto com base em conteúdos falsos ou enganosos.
Outras checagens sobre o tema:
O Projeto Comprova tem publicado uma série de checagens sobre as eleições, como a que mostrou ser falso que a cidade de Barreiras, na Bahia, registrou número de votos em Lula superior à população do município.Também verificamos que Vini Jr não criticou Bolsonaro no Twitter e que Alexandre de Moraes não disse que vai mandar prender eleitor que reclamar das urnas.
Investigação e verificação
Metróples, O Popular, Estadão e O Dia participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos A Gazeta, Correio Braziliense, CBN, Piauí, Folha, Rádio Band News, Correio do Estado, SBT e SBT News.
Projeto Comprova
Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 42 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Iniciado em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. Agora, na quinta fase, o Comprova segue verificando conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. O SBT e SBT News fazem parte dessa aliança.
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