Médica cita estudos não conclusivos para sugerir conspiração contra cloroquina
ENGANOSO: Procurada, médica enviou 34 estudos para justificar texto de um site. Nenhum dos estudos é conclusivo sobre a eficácia dos medicamentos citados. Ela diz que a venda da cloroquina e da ivermectina foi proibida no Brasil, o que não é verdade
31/07/2020
Conteúdo verificado: Texto publicado no site Diário do Brasil escrito pela médica Helen Brandão, de Goiânia, defende o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e sugere haver uma conspiração da indústria farmacêutica para vender medicações mais caras.
É enganoso o texto escrito pela médica Helen Brandão defendendo que o uso da cloroquina em pacientes no início da covid-19 elimina o novo coronavírus. No texto, publicado pelo site Diário do Brasil, a médica sugere ainda que a indústria farmacêutica tem conspirado para viabilizar remédios mais caros para tratar a doença. Por isso, segundo ela, há um movimento para proibir a venda de medicações baratas, como a cloroquina e a ivermectina. As informações do texto estão distorcidas ou fora de contexto.Procurada pelo Comprova, Brandão apresentou 34 artigos científicos nos quais afirmou ter se embasado para defender a prescrição da cloroquina e outros compostos, como a ivermectina e o zinco, para pacientes com quadros leves de covid-19. Nenhum deles é conclusivo sobre a eficácia desses medicamentos.
Alguns não passaram por teste clínico randomizado, em que voluntários são divididos em dois grupos ? um recebe o medicamento em estudo e o outro, placebo. As pessoas dos dois grupos são escolhidas aleatoriamente para evitar que fatores como idade e quadro de saúde influenciem nos resultados. Elas são acompanhados por pesquisadores ao longo de vários meses. Esse tipo de estudo é considerado o melhor para avaliar a eficácia de medicações.
Diferentemente do que a médica afirma, a venda da cloroquina e da ivermectina não foi proibida no Brasil. Na verdade, a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou, em 24 de julho, uma norma para que esses medicamentos sejam vendidos com receita médica. E o Ministério da Saúde inclui a cloroquina no protocolo de tratamento para pacientes leves da covid-19.
O Comprova fez contato com a médica. Helen Brandão é graduada pela Universidade Federal de Goiás e tem pós-graduação em Dermatologia e Medicina Estética.
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Como verificamos?
O Comprova buscou dados sobre a formação profissional de Helen Brandão na plataforma de currículos acadêmicos Lattes, mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e junto ao Conselho Regional de Medicina de Goiás (CREMEGO). Também encontramos uma página no Facebook da clínica da médica, onde conseguimos o contato telefônico dela. Por WhatsApp, Brandão enviou vários artigos acadêmicos sobre a pandemia.
Também buscamos informações online sobre empresas farmacêuticas que a médica citou no texto verificado e no contato por WhatsApp. Além disso, buscamos o posicionamento de autoridades de saúde sobre medicamentos e tratamentos para a covid-19.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de julho de 2020.
Verificação
Quem é Helen Brandão
Helen Brandão é médica e possui registro no Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (CREMEGO). No Facebook, o Comprova encontrou uma página com seu nome que faz referência a uma clínica privada de procedimentos estéticos em Goiânia.
Também encontramos o currículo da médica na plataforma Lattes. De acordo com as informações fornecidas por Brandão, ela possui graduação em medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e pós-graduação em Dermatologia e Medicina Estética. Além disso, informa que fez residência médica em Saúde da Família e Comunidade pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
Através de uma troca de mensagens no WhatsApp, Brandão confirmou que faz atendimentos clínicos e de dermatologia em Goiânia.
Drogas e estudos
Em seu texto, Helen Brandão conta que as discussões envolvendo a hidroxicloroquina a levaram a um `sonho perturbador`, em que ela tinha asas e `conseguia tirar algumas pessoas que ?subiam? (?), mas só algumas`. Depois disso, ela escreve, foi pesquisar sobre as drogas e o vírus. `Algumas tabelas e dados me pareciam difíceis de analisar. Mas segui estudando e conversando com colegas que também só queriam entender.`
Após falar com o Comprova, Brandão enviou 34 estudos de diversos países para a equipe, sobre variados temas ? cloroquina e hidroxicloroquina (12, no total), ivermectina, zinco, colchicina, nitazoxanida, azitromicina e intubação, entre outros. Todos foram analisados e, destes, ao menos 21 têm limitações e são inconclusivos, segundo os próprios autores.
É o caso da pesquisa intitulada `Uso preventivo da hidroxicloroquina está associado a um risco reduzido de covid-19 em profissionais de saúde`, que conclui que devem ser realizados estudos mais detalhados, com amostras maiores, utilizando o método do ensaio clínico randomizado controlado ? o mais confiável, como o Comprova já explicou.
Outro estudo, segundo o qual a cloroquina reduz o risco de morte em pacientes em fase grave da doença se administrada em pequenas doses, foi contestado pelos autores menos de uma semana após a publicação.
Também enviado pela médica, o estudo `Eficácia clínica dos derivados de cloroquina na infecção por covid-19: meta-análise comparativa entre o Big Data e o mundo real` tem Didier Raoult entre os pesquisadores ? ele é autor de um dos primeiros trabalhos que Brandão leu, como ela conta no site Diário do Brasil.
O infectologista francês ganhou projeção internacional durante a pandemia ao propor o uso da hidroxicloroquina contra a covid-19 antes mesmo de ter publicado pesquisa a respeito ? o que chegou ao conhecimento de líderes como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que chamou a droga de `cura milagrosa`. Por isso e por utilizar métodos duvidosos em seus estudos , Raoult, que já apareceu em outras verificações do Comprova, é criticado na comunidade científica.
Proibição
`Me chamou a atenção a necessidade não só de falar que não funciona mas também proibir o uso das medicações. Medicações que antes eram de venda livre?`, escreve a médica no texto que viralizou. Ela afirma, erroneamente, que a venda, a prescrição ou o uso de algumas drogas teriam sido suspensos no país. Em nenhum momento da pandemia o governo federal, ou qualquer autoridade, retirou medicamentos de circulação.
Houve um conflito de ideias entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e profissionais da saúde que foram contra a adoção da cloroquina e da hidroxicloroquina no protocolo contra a covid-19. Esse embate levou, inclusive, à demissão do ministro da Saúde Nelson Teich, que se recusou a ampliar o uso da droga para pacientes com quadros leves da covid-19 por falta de evidências científicas.
No dia 24 de julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução que exige que as farmácias retenham receitas das pessoas que queiram comprar cloroquina, hidroxicloroquina, nitazoxanida e ivermectina. Segundo a Anvisa, o objetivo é impedir a compra indiscriminada dos medicamentos. A comercialização deles no país, porém, não está proibida, desde que o paciente apresente a receita médica.
Brandão afirma também que pesquisadores não conseguiram documentar ou justificar suas argumentações sobre o `temido efeito` que as drogas causam, as `arritmias graves`. Porém, diversos estudos sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina concluem que, além de não serem comprovadamente eficazes contra a covid-19, elas podem causar `eventos arrítmicos potencialmente fatais`, conforme nota da Sociedade Brasileira de Arritmias Cardíacas (Sobrac) citada em outra verificação do Comprova.
Outros profissionais
Além de Didier Raoult, Brandão cita em seu texto o médico Vladimir Zelenko. Ele atua em Nova York e ficou conhecido internacionalmente após afirmar ter obtido `resultados positivos tremendos` em um estudo no qual usou a combinação de hidroxicloroquina, zinco e azitromicina ? a pesquisa, porém, sequer foi publicada em um periódico de saúde.
A médica brasileira conta ainda ter recebido um alerta ao encontrar em uma edição do livro Princípios de Medicina Interna de Harrison a `descrição da hidroxicloroquina/cloroquina como agente antiviral`. Segundo a 20ª edição da publicação (a mais atual), a hidroxicloroquina pode ser usada com outros remédios para tratar a febre Q crônica.
Além de ter publicado diversas verificações mostrando que não há nenhum estudo que comprove a eficácia da cloroquina nem da hidroxicloroquina contra o novo coronavírus, o Comprova conversou com Leonardo Weissmann, infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, para saber sobre a ação antiviral das drogas. De acordo com ele, `a atividade antiviral da hidroxicloroquina está sendo estudada há décadas; é um medicamento que tem demonstrado atividade in vitro contra uma série de vírus, ou seja, em laboratório, mas essa ação não é vista em humanos`.
Conspiração
Procurada pelo Comprova, a médica reafirmou que existe uma conspiração contra a cloroquina. `Estão tentando evitar que seja usada. Pois concorre com o Tocilizumabe`, escreveu, por mensagem.
Em uma pesquisa sobre o medicamento mencionado, verificamos que, no Brasil, o nome comercial do tocilizumabe é Actemra e a patente é da farmacêutica multinacional Roche. As indicações do laboratório para o uso do remédio são os casos de artrite reumatoide, artrite idiopática juvenil poliarticular e artrite idiopática juvenil sistêmica. Também de acordo com a bula, a ação do tocilizumabe é imunossupressora e não há recomendação de uso quando o paciente apresentar algum tipo de infecção.
Durante a pandemia da covid-19, alguns hospitais começaram a utilizar o medicamento no tratamento dos pacientes e relataram bons resultados. A Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, porém, publicaram em maio as Diretrizes para o tratamento farmacológico da covid-19, e consideraram que os níveis de confiança nas evidências de eficácia do tratamento com o tocilizumabe eram muito baixas e que o custo era elevado, não recomendando o uso de rotina do medicamento nos casos de covid-19. Além disso, em junho, a Itália descartou o uso da droga no tratamento de pacientes com o novo coronavírus.
A médica ainda mencionou no contato com o Comprova, como exemplo da conspiração citada no texto que viralizou, alguns laboratórios farmacêuticos que se beneficiariam com a não indicação da cloroquina no tratamento da covid-19: Gilead, Biotoscana e United Medical. O Gilead é o laboratório que produz o remdesivir, e o Comprova já realizou uma verificação sobre uma suposta conspiração envolvendo a empresa. A Biotoscana, que é colombiana e também foi citada pela médica, registrou, na verdade, prejuízo de mais de R$ 50 milhões no primeiro trimestre de 2020 e atribuiu as perdas financeiras à pandemia da covid-19. A United Medical, de origem uruguaia foi comprada pelo grupo Biotoscana em 2014.
Por que investigamos?
O Comprova verifica conteúdos de políticas públicas do governo federal e da pandemia de covid-19 que tenham viralizado na Internet. O texto de Helen Brandão publicado no site Diário do Brasil teve 21.917 interações nas redes sociais, segundo a plataforma de monitoramento Crowdtangle, sendo compartilhado por diversas páginas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Facebook.
Em ao menos dois grupos do Facebook onde a mensagem circulou, o link foi compartilhado junto com uma mensagem que sugeria submeter as pessoas com visão crítica da cloroquina à morte por enforcamento, em referência ao Tribunal de Nuremberg, que julgou crimes de guerras cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Desde o início da pandemia, o Comprova já mostrou serem enganosos um site com nome de vários médicos que sugeria haver consenso para tratamento do novo coronavírus e vídeos em que médicas sugerem ser comprovado que o uso da hidroxicloroquina e da ivermectina curem a covid-19. Também já mostrou estarem fora de contexto conteúdos que viralizaram recentemente sobre vacinas, medicamentos naturais e sobre o andamento da pandemia no Brasil.
Enganoso para o Comprova é todo conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Investigação e verificação
BandNews FM, Sistema Jornal do Commercio, Folha e Nexo participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos UOL, Estadão, Gazeta do Sul, O Povo, Piauí, SBT, Correio e Diário do Nordeste.
Projeto Comprova
Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 28 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. A edição de 2019 foi dedicada a combater a desinformação sobre políticas públicas. Agora, na terceira fase, o Comprova retoma o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. O SBT faz parte dessa aliança.
Desconfiou da informação recebida? Envie sua denúncia, dúvida ou boato pelo WhatsApp 11 97795 0022.